Um fantasma ronda o Brasil: o fantasma da falta de educação e da baixaria.
Juízes do Supremo, parlamentares, ministros, altos empresários e governadores
perderam o senso luso-brasileiro e ameaçam um bate-boca generalizado. Alguns
tentam conjurar essas brigas antiaristocráticas que pegam mal porque revelam
muito do que não pode ser mostrado.
Aqui se faz um apelo aos leitores. Sejam sinceros e tirem a honestidade da
zona cinzenta dos pecados e dos malfeitos. Façam o contrário dos diplomatas e
dos populistas: proclamem o que pensam e sentem. Seremos todos acusados de
intrigantes e boquirrotos pela direita (a dona da bola e, por isso mesmo,
corrompida), pela esquerda (revolucionária, é claro, mas no poder e com vastos
limites) e pelo centro que sempre foi o berço do nosso moralismo que diz que
vai, mas não vai antes de saber pra onde a coisa está indo e, por isso mesmo,
emudece porque a sinceridade que iguala é o maior pecado de um sistema
desigual.
- I -Critique abertamente e não se esconda no anonimato. Seja grosso com os pulhas
que roubam o nosso dinheiro e discorde. Não escolha a pusilanimidade
dominante.
- II -Contrariando frontalmente a visão geral do escândalo que cobre o nosso País
de egrégios gregos gregários - de Deltas a Demóstenes -, envolvendo governantes
e governados, eu afirmo que quando o bate-boca ocorre nas altas esferas temos um
sinal de lucidez, de democracia e de progresso. No contexto da hipocrisia
nacional, uma discussão entre ministros do Supremo é algo revolucionário.
Todo tribunal é feito de conflitos, denúncias e busca da verdade. Exceto no
Brasil, onde ainda se tem o direito de mentir e se é obrigado a engolir choro.
São os conflitos verbais que deixam surgir a Verdade com sua nudez transparente
e escandalosa.
Chega de botar a poeira debaixo do tapete em nome de uma ética aristocrática.
Vivemos um momento no qual o igualitarismo rompe nossas portas e, como um
hóspede imprevisto e não convidado, demanda - acima de tudo - um mínimo de
sinceridade. E a sinceridade só surge quando nos entregamos a forças maiores do
que nós. Como foi o caso do ministro do Supremo que, criticado pelo colega,
reagiu numa veemente e histórica entrevista.
Este manifesto discorda da opinião segundo qual o Supremo fica menor quando
seus membros discordam. Pois o seu autor está absolutamente seguro ao dizer que
quanto mais os agentes públicos ficarem putos uns com os outros, mais democracia
igualitária cairá, como chuva de verão, sobre todos nós.
O imprevisto é o centro da vida democrática. E o imprevisto maior do Brasil
no qual vivemos é a descoberta do papel do Estado não como fulcro de igualdade
de oportunidades, mas como uma fonte de aristocracia e de enriquecimento
ilícito. Só a baixaria pode liquidar a perversão de combinar até mesmo as
discórdias. Temos de reformar a nossa boa educação de senhores de engenho que
leva à mentira e ao agrado do governante para pegar o contrato sem discutir
mérito ou eficiência. Mesmo - pasmem - quando isso pode existir. O bate-boca no
Supremo não diminui a Corte magistral. Muito pelo contrário, ele torna essa
corte mais honrada e democrática. O Brasil precisa ser desmascarado e posto a nu
para si mesmo. É hora de ver o fantasma.
- III -Democracia é partejada por igualdade (todos podem falar, mesmo errado) e
individualismo (todos têm o direito de querer) - esses valores que produzem
conflito. O conflito revela o lado vivo do Supremo Tribunal Federal. Ele mostra
que os nossos supermagistrados são humanos e suscetíveis de raiva, ressentimento
e vingança. Por isso a discussão não é só mais do que bem-vinda: ela é
fundamental.
- IV -Sem opinião não há sinceridade. A medida da honestidade jaz no que realmente
pensamos de algum assunto ou pessoa. É, pois, imperioso acabar com as luvas de
pelica. Discutir não é ser mal-educado, é afirmar que - finalmente! - podemos
concordar em discordar. O Brasil precisa ver as suas meias furadas.
- V -Acabemos com a frescura dos lenços de seda - sejamos igualitários. Olhemos os
fatos que estão nas manchetes e enxerguemos o que dizem. O bom-mocismo nacional
é uma simpatia e uma gracinha, como dizem os grã-finos, mas é também o modo de
obter altos faturamentos não só em obras, mas em projetos do governo. Essa coisa
personalizada e com dono mas sempre isenta, sempre ausente, sempre vendo o
debate como uma baixaria e, por isso, sempre inocente porque não se mete ou é
responsável por coisa alguma!
Irrompamos respeitosamente com dona mamãe. Ela diz: seja paciente com o tio
Fulano ou com o Dr. Sicrano. Eu vos digo: sejam mal-educados e profiram o que
pensam. O Brasil precisa de bate-boca - esse cerne da oposição! Mande o
professor às favas, denuncie o prefeito, o senador, o empresário, o chefe e o
presidente - caso eles sejam mentirosos, incompetentes e desonestos.
- VI -Desvende o Brasil. Seja um mal-educado dizendo o que pensa. Só assim
realizaremos a nossa tão atrasada revolução igualitária, obrigando esta CPI a
promover um desmascaramento geral. Rezemos para que todos botem a boca no mundo
e sejam sinceros. Se isso ocorrer, faremos o inusitado: não vamos certamente
acabar com a corrupção, mas iremos ferir de morte esta república que
aristocratiza seus altos funcionários e torna milionários os seus sócios.
Mal-educados do mundo, uni-vos!
Roberto DaMatta - O Estado de S.Paulo
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